Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


terça-feira, 12 de maio de 2015

Médica da vida real

Voltamos...
Renovados, vigorosos, sem olheiras cor-de-carvão. Optamos pelo plano B da vida das pessoas-comuns. Optamos pelas noites de cama real, de almofadas grandes, brancas e com perfume a jasmim.
Optamos pelos sonos de horas não interrompidas. Optamos pelo sábado e domingo em que o centro comercial apinha-se de gente às cores. Optamos pelos meninos sãos ou pouco doentes. Optamos pela vida real, sem histórias de quase-ficção para contar...
Deixei para trás um projeto construído a quatro e mais algumas dezenas de mãos. Fugi das olheiras, do colchão empilhado no meio de uma sala indigna. Fugi do ser uma interna para sempre. Abandonei as paredes cinzentas majestosas do hospital que me fez crescer, mas que também me esmagou o caminho. Perdi os meninos-grão-de-arroz, os meninos de coração apressado, os meninos de vidas vaporosas e fugidias. Larguei o pijama branco-sujo que enchia de cor com toucas floridas e casacos despropositados. Cortei a ânsia do telefone que tocava, o barulho infernal do helicóptero. Esqueci como se dão más noticias (muito más notícias).
E, agora sou assim: salto agulha, bronzeada, diurna. Sorrio livre, sem medos. Dou boas notícias e algumas menos boas (mas nem por isso más). Levo desenhos de cor no bolso da bata justa imaculadamente branca. Não me esqueço de beber 1 litro de água por dia porque está sentada ao meu lado. Sou assim uma pediatra de um hospital privado.
Como disse, voltamos: eu e as palavras, mais doces, mais ternas, mais fáceis, e talvez por isso tão difíceis de retornar a escrever. Falta-me o nervoso miudinho que me fazia perder anos de vida. Falta-me os abraços demorados no fim do transporte. Falta-me as mãos de uma mãe qualquer agarradas às luvas que tiveram a vida do seu filho. Falta-me as respirações rápidas e ofegantes, os cantares dos monitores, as reuniões de passagem de doentes carregadas de doses e planos, as noites não dormidas, as sapatilhas calçadas 24 horas consecutivas. Até me falta, o raio da máquina de chocolates e afins do piso 01. É um facto, falta-me essa vida que me enchia a alma. Ao olhar para o texto escrito, só parecia maravilhoso o ser médica de um hospital público, universitário, pioneira de um serviço pediátrico. É bom e faz-nos felizes, mas é uma felicidade fugaz, que enche a alma e por instantes se evapora. Não queria isso para mim!
Pessoas dos hospitais que nos fazem encher a alma, por favor, cuidem dos vossas pessoas cuja alma é fácil de encher! Se não cuidarem, elas vão-se embora, porque ao contrário do que pensam, ainda há muitas alternativas...


A quem me fez crescer, ser uma melhor mulher, pediatra e amiga!
Ao TIP e a todos os que o viveram: uma vez TIP, TIP para sempre!






10 comentários:

  1. Que saudades Sofia.
    Um grande beijinho e votos que tudo corra muito bem.

    ResponderExcluir
  2. E a nós faltas-nos tu! Beijinho e que tudo corra bem, Diana

    ResponderExcluir
  3. temos vidas muito parecidas, suspeito eu. e eu, a eterna interna, também estou a chegar a um ponto em que preciso de mudar.
    beijinhos, que a nova vida corra como sonhaste :)

    ResponderExcluir
  4. E se todos fizerem o mesmo?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Cada um escolhe o melhor para si, ou o que pensa ser omelhor! Cabe a cada hospital, respeitar mais os seus trabalhadores, sobretudo os apaixonados pelo que fazem! Cabe a cada hospital, preservar os trabalhadores e tentar que não tenham vontade de fazer o mesmo...

      Excluir
    2. Pois é isso mesmo!
      Aquele su tira anos de vida...
      Bjs

      Excluir
    3. Se todos fizerem o mesmo...onde e por quem vão ser tratados os doentes realmente doentes? Temos todos algum dever em relação ao SNS....um irmão. ..um filho....a nossa longa formação....E que tal conjugar os dois mundos. ....Difícil. ...claro. ...mas será mais difícil um dia chegar a um hospital como doente e não encontrar ninguém capaz.

      Excluir
  5. Momentos de uma vida, nem sempre fáceis, nem sempre felizes, muitas vezes dolorosos, mas que nos marcaram e fizeram crescer. Fica para sempre a união, o carinho e a cumplicidade. Nunca parte quem permanece no nosso coração. Beijinhos Super S!

    ResponderExcluir
  6. Assertiva como sempre,

    mordaz bambém;

    apaixonada no que acredita;

    sem medos ou preconceitos em dizer ou fazer o que acredita.

    Bem vinda Sofia.

    Bem vindas as tuas crónicas.

    Bem vinda a vontade de voltar a espreitar o que escreves e com certeza nos irá pôr a meditar e a acenar com gestos de quem está a concordar mas que não tem capacidade de o escrever ou dizer tão frontalmente.



    Deixar a paixão do que fazemos e do que acreditamos, porque o "sistema" assim nos obriga empurra a procurar soluções, custa pois o investimento, mais que qualquer outro (tempo, finaceiro, fisico e até pessoal e familiar), emocional é enorme e por vezes uma crença uma fé uma ideação um clubismo um partidarismo...

    Mesmo com tudo isso, os que comungamos dessa paixão, nos faz querer mudar mas... muitas vezes Não temos oportunidade.

    E sim foi muito bom ter tido a oprtunidade de ver-te trabalhar com Paixão, viver com paixão cada transporte, tomar café e só ficar ouvir-te falar com um brilho enorme nos olhos, com um sorriso feliz, com a adrenalina de quem quer ir já outra vez em mais um transporte do inesperado do desconhecido... Foste uma inspiração e com certeza ficaras sempre associada, nas nossas (de quem conviveu) mentes, ao TIP e aos intensivos.



    Beijinho grande e uma vez mais Bem Vinda ás crónicas.

    ResponderExcluir
  7. Sofia, obrigada por ter voltado...também eu sou quase médica (acabo daqui a umas semanas), também eu conheço as máquinas do 01 e também eu começo já a perceber um bocadinho essas angústias...desejo-lhe a maior sorte do mundo para esta nova etapa! E vá dando notícias por favor :)

    ResponderExcluir