Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


terça-feira, 24 de setembro de 2019

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À T, 
Saí de 24 horas fictícias, que são quase sempre 26 horas reais. Ajustei anti-epilépticos, parâmetros ventilatórios, soros e, tentei ajustar destroços de pais. 
Essa é a parte mais difícil do que faço. 
22 horas, aos pés de uma cama imensa da Unidade. Falávamos do vácuo que nos acomete quando o nosso filho está doente, verdadeiramente doente. Uma indescritível sensação de que estamos num pesadelo, que aquilo não nos está a acontecer, do porquê de ser para nós, do choro que grita no peito e que já secou as lágrimas dos olhos, dos ecos das vozes dos médicos, das decisões que esperamos ser as mais acertadas, da confusão esquizofrênica, do tempo parado no tempo. Falávamos do leite que já não temos porque o medo levou, do almoço que já não sabemos o que foi porque não chegou a ser mastigado, só engolido, da dependência dos monitores, do colo que não pudemos dar, da ida a casa que nunca existiu, do cheiro a banho acabado de tomar e da primeira roupa tricotada que nunca usou.  Falávamos disso com a mesma leveza que se discute a roupa suja no final do dia de colégio. (Curioso, não é?)
Foi esta conversa que trouxe comigo hoje e foi esta conversa que a fez desenhar um sorriso no rosto. 
Foi esta conversa que me fez voltar a escrever e perceber que parte do caminho é esse. 
T, aguardo pela mesma...
Sofia




sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Os Meus

Os que são meus.  É engraçado ouvir sonantes comentários acerca da proximidade com os doentes, ou no caso da Medicina Pediátrica, com os Pais. Questionável, até, diria eu... Mas, na verdade, sou-lhes absolutamente indiferente, passam por mim como uma brisa amena daquelas que não faz o cabelo deslizar no rosto. Os inquilinos daquelas oito camas são meus. São meus durante 24 horas consecutivas e mais outras tantas que se vão semeando todos os dias.  Mas também são meus quando dispo a desarranjada farda amarela e vou para casa, ou quando vão habitar outra cama fora dali.
E, aos que são meus, assumo com eles a dor, a taquicardia, a angústia, a alegria, a vitória. Quero estar no momento de dar a volta ou do click. Não deixo que fiquem na dúvida ou na incerteza, ou pelo menos tento que não o fiquem. Não permito que se sintam sozinhos. Amparo as lágrimas corridas. Respeito a ira. E, por isso, quando um inquilino (não raras vezes), decide abandonar o caminho, exausto do caminho empedrado que se ergueu perante a sua pequenez, também é minha uma tristeza aliviada.
Ao meu pequeno que fugiu devagarinho para um caminho que terá talvez perfume a gelado de mirtilo, será morno como um fim de tarde de Verão e talvez tenha borboletas a dançar ao som de risadas de criança. Boa viagem!