Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


sábado, 30 de março de 2013

Páscoa do lado de cá

Esquecido na mesa desarrumada eis um pacote de amêndoas torradas, um pão-de-ló amarelo e fofo que se derrete nos lábios e agarra os dedos, uma Páscoa de amanhã. Esquecidas entre quatro paredes pintadas de um azul céu interminável, estão as pessoas que cuidam de outras pequenas pessoas...Pequenas pessoas que se esquecem de respirar, que se esquecem de abrir os olhos, que se esquecem de  fazer o coração bater.
Angústia lavada pelas lágrimas contidas, esperança fechada num bloco operatório de bisturis e mãos mágicas que retalham geometricamente, sorriso leve, abraço quente, a vida num pedaço de tempo. São a Mãe e o Pai de príncipes e princesas dos mundos sem relógio. São os corações que sustém a respiração. São os olhos que não pestanejam.
E, os bisturis cruzam-se, as compressas deslizam, os soros correm, a ar flui, os drenos dançam...O tempo bate sem parar...Esquecem-se as amêndoas, o pão-de-ló e a vida do lado de lá das quatro paredes...O que conta é aqui e agora!


Aos Pais das pessoas pequenas, pessoas esquecidas e que fazem esquecer...mas que não se esquecem!

Por entre quatro paredes...

terça-feira, 26 de março de 2013

Retrato de um Domingo de Páscoa

Flores colhidas preciosamente caidas pelos degraus das escadas, sino que se ouve estridente do outro lado da aldeia, senhores de branco que erguem uma cruz beijada, domingo em que o acordar era fugaz com o sol meigo a derreter os pés da cama, amêndoas cor-de-arco-íris numa taça brilhante que desaparecem nas algibeiras do compasso, uma nota rica embrulhada num envelope vazio sobre a mesa que os senhores pegam quase às escondidas, ovos pintados à mão que se desmacham em sal e pimenta e se engolem um atrás do outro sem parar, primos que se abraçam a segunda vez no ano. É o retrato de um Domingo de Páscoa antigo com perfume a flores de primavera, toque morno da brisa e sabor a amêndoas elegantes que desenham bebés.
Fotografei-o num suspiro ao olhar os vidros imaculados da confeitaria colorida e com perfume doce. Amêndoas gordas, vestidas de lilás, com cheiro a açucar, amêndoas morenas e tostadas, amêndoas magrinhas anoréticas a esconder o chocolate na barriga, amêndoas recortadas que desenham frutas... e, as amêndoas-bebés elegantes, cor-de-rosa e maternais...Eram as amêndoas-bebés que me faziam enfiar as mãos pequenas e atrevidas nos voluptuosos pacotes recheados que a avó me dava e num rodopio delicado, encontrá-las. Passávamos a tarde de Domingo de Páscoa na busca secreta das amêndoas-bebé...Lembrei-me disso, do sabor amargo a uvas azedas e de como eram raras, e confesso que, o pensamento de adorar aquelas amêndoas é um pouco assustador agora... Risos...


Amêndoas-bebé...


As escolhas do R.

Carros vermelhos que se mexem quase sozinhos, baloiços sonhadores pendurados no tecto de nuvens, bolas coloridas, casinhas de duende deliciosas, violas cantantes, livros com ilustrações encantadoras... mas as escolhas do R. são as brincadeiras que desenha com pedaços de nada, transparentes e que o fazem rir até quase parar de respirar.
Esconde-esconde do R. Encosta os braços rechonchudos num abraço e deixa cair as pálpebras manhosas por segundos, as pupilas saltam por cima dos ombros num espreitar repentino, soletra os algarismos desordenados e distorcidos e num breve segundo chega ao dez. Dez segundos anões que me fazem correr em busca de uma porta entreaberta, sustenho a respiração e sinto os passos desajeitados a aproximarem-se com um sorriso agora ainda mais desdentado...E, sou apanhada com um abraço repentino!
R., é o Rei. Num ápice de cansaço, eu e vovó de pele cor de cevada, erguemos o R. numa cadeira-poltrona transparente que se levantou até ao céu. Numa dança pausada e com um gesto de aclamação de realeza, gritamos, é o Rei! Os olhos reluzentes por entre o frio enevoado que mimava o rosto diziam que a partir daquele momento o colinho era uma conta matemática de igual a cadeira do rei.
Histórias das coisas do R. Delicia-se com as histórias escritas num piscar de olhos e derramadas em palavras simples, enfeitadas pelas mãos e sussurradas ao ouvido. Pede a história das meias, a história das luzes, a história das coisas que eu nem me lembro que existem...Pede-as num desenrolar de pensamento, imparáveis e escuta-as num silêncio atroz, encantado. E, só paramos para o café...aquele café de todos os dias, o meu favorito!
O carro do R.. O R. tem um carro, que diz ser amarelo, com uma porta única e um volante que gira sem parar, mas que é concerteza muito velho. Avaria todos os dias, furam-lhes os pneus, e está sempre um frio tremendo que avisa com os olhitos arregalados e um gesto de aperto que aquece. Nunca ninguém o viu, mas o carro amarelo leva-nos pelas ruas estreitas do imaginário...
As asas do imaginário levam o R. num voo sem fim...Voar assim não custa nada e faz rir até doer a barriga!


Conselho de Pediatra que é Mãe do R.: dêem asas ao imaginário de cada príncipe e princesa, abram as janelas e deixem-nos voar de mãos dadas... se doer a barriga ou custar a respirar, não tem mal, porque será de tanto rir à gargalhada.


Esconde-esconde do R.

domingo, 24 de março de 2013

A Pediatra que eu sou II: defeitos e feitios

E, sou muito mais e também muito, muito menos...
Menos tagarela, ou mesmo o melhor é dizer, menos desbocada. Com os minutos infindáveis aprendi a refrear as palavras, a não ficar magoada com os bons dias que não chegam de volta, a tapar os ouvidos ao palavreado agressivo e esperado.
Menos frágil. As lágrimas que caem a fazer rolar o rimel preto de todos os dias pelas bochechas, foram secando aos olhares repudiantes de alguns. Fraqueza? Não...São as gotas da alma que chora, triste ou zangada ou até mesmo feliz... Mas, aqui no Mundo dos Médicos, não devem acontecer, ou se acontecerem não se podem ver. Choro, entristeço-me, zango-me ou sorrio, mas sem lágrimas...só porque é ser menos frágil.
Menos esfomeada. Os pratos enfeitados de arroz basmati com perfume a caril desapareceram e as bolachas da máquina da esquina do corredor do hospital são o meu aperitivo preferido. Perdem-se as moedas da algibeira da farda na ranhura fria da máquina que vomita um qualquer salgado calórico que será engolido num ápice pelo corredor. Perde-se a lucidez...
Menos doente. Constipações, viroses, diarreias passam silenciosas por mim. Os beijos besuntados em vírus ofereceram-me  imunidade quase total. A bater três vezes na madeira da mesa...
Menos dorminhoca. Converso pouco com a almofada. A cabeça encosta e as pálpebras logo se beijam num ápice. O toque do telefone ecoa nos ouvidos e tem um efeito que chamo de efeito-mola, estonteante e que empurra o pensamento. Atar o cabelo preto esparguete com uma fita amarfanhada, abrir os olhos e ir.
Menos "ar" de menina. Vezes e vezes sem conta diziam a menina, em vez de a senhora, ou em vez de outra qualquer designação que me fizesse parecer mais mulher, e confesso que estranhava isso. Mas, agora o rosto de menina deu lugar a um rosto enrugado onde se desenham finas umas olheiras que não terminam jamais. E, se chamarem menina, já não é para mim...
A Pediatra que eu sou é cada um destes defeitos e feitios que vão e que vêm com o soprar dos ventos.


Defeitos e feitios, misturados em mim


sábado, 23 de março de 2013

A Pediatra que eu sou I: de bailarina a Pediatra...

Sonhava em ser bailarina de tule rosa e sapatos de cetim a rodopiar pelos palcos de países do mundo. Sonhava escrever poesias nas páginas dos livros, nos muros das ruas e assinar como Rita, um heterónimo que escolhera e que revejo em todos os poemas e frases dos meus cadernos de contos de outrora. Sonhava em ser professora daquelas que ensinam o verso das histórias, das que escrevem com giz num quadro de lousa pendurado algures num jardim recheado de girassóis, ao olhar sempre atento dos pequenos. Sonhava em ser tudo ao mesmo tempo, simplesmente porque o tempo nessa altura não existia. Mas, num súbito momento de loucura, troquei as pontas de cetim rosa, as páginas de letra trémula e o pau de giz atrevido, pelo estetoscópio. E, sou Médica Pediatra, como o pequeno R. diz no seu jeito de dizer, a que dá remedinho aos meninos pequeninos, desenhando com os dedos quase a tocarem-se, a palavra pequenino.
E, deixo em palavras soltas a Pediatra que eu sou, ou que às vezes não sou, porque não me deixam ser.
Cor-de-rosa. Porque as princesas adoram e balbuciam em segredo "Mamã, é igual a mim". E eu confesso que também adoro. Adoro fardas cor-de-rosa, casacos cor-de-rosa, meias salpicadas de rebuçados cor-de-rosa enfiadas em socas cor-de-rosa morango.
Inquieta ou irrequieta. Com formigueiro nos pés, atrevo-me a dizer que até posso ser enervante, subo e desço escadas, derramo palavras em galope, mexerico.
Desorganizada. Os meus papéis são confusos, embrulhados, trapalhões, dispersam-se e movem-se num labirinto cujo caminho conheço de olhos fechados.
Pontual. Detesto relógios que batem devagarinho, não chegar à hora marcada e pessoas que se atrasam. O meu relógio acelerado corre sem parar, e acho que até precisava de lhe acrescentar mais uns algarismos.
Descontraída. Recuso dar aos príncipes e princesas a terceira pessoa do singular num acto de realeza de consultório, construído, distante e formal. Em momentos de uma insanidade de conto infantil, chamo-lhes crocodilo e peço-lhes que abram a boca para espreitar as senhoras bolinhas lá trás, aperto-lhes a barriga-balão e tento adivinhar qual foi o jantar de hoje e num shu! entusiasmado e teatral, peço silêncio para se ouvir a música do coração.
Sonhadora. Sonho ter música em todos os consultórios, música de anjos, transparente e morna, daquela que embala a alma e quase não se ouve, mas que vibra no ar.
Apaixonada. Derreto-me com os vestidos brancos das princesas pequeninas, com os abraços e beijos molhados e fugazes, com os desenhos rabiscados na sala de espera. Arrepio-me com as histórias de cada corpito frágil e guardo as lágrimas para depois.
E, sou muito mais e também muito, muito menos...

 
O telefone toca num choro gritado. Tudo se dilui e num movimento rápido, o caminho é o que a voz do lado de lá do telefone gritou. Num papel sarrabiscam-se os remédios mágicos, os tamanhos, os valores que limitam o traço da vida. Ligam-se as sirenes que apitam desenfreadas e o asfalto aquece as rodas. Borboletas na barriga dançam uma dança agitada. Seis mãos batem no mesmo ritmo, soletram a mesma música e acolhem os pequenos destemidos. Perfusões, bólus, compressões, ventilador, incubadora e as seis mãos agarram as histórias e fazem-nas respirar.
Aos médicos, enfermeiros e TAEs que comigo partilham as histórias de cada pequeno príncipe e princesa...
 
  
 
S.R.F., Enf. R. & C. em Hospital Pediátrico de Coimbra

S.R.F., Enf. G. & L. às 5h da madrugada após um transporte


S.R.F., perto das nuvens, em direcção a Bragança
 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Ser Mais

Três cromossomas vinte e um...mais um que os outros príncipes e princesas do Mundo!
Mais um cromossoma que lhes desenha os olhos em feitio de sardinha. Mais um cromossoma que lhes faz saltar da barriga-balão um umbigo trapalhão saliente. Mais um cromossoma que lhes costura uma prega só nas palmas das mãos quentes e mexericas. Mais um cromossoma que distrai o arquitecto de corações e fá-lo  construir um coração labiríntico que sopra em assobio. Mais um cromossoma que os faz voar para o mundo dos príncipes e princesas sem relógio. Mais um cromossoma que os enche de um amor genuíno que transborda das mãos rechonchudas, um amor que verte dos abraços que dão a torto e a direito. Mais um cromossoma que os faz serem príncipes e princesas Mais.


Não podia deixar de desenhar em palavras os príncipes e princesas Mais, com mais um cromossoma 21, mas também com mais amor, ternura, carinho, força e vida.
Dia Mundial da Trissomia 21...Ser Mais!


Eu também Acredito que Sim...



quarta-feira, 20 de março de 2013

Felicidade...

Felicidade é engolir o cheiro a maresia. Felicidade é ver retratos antigos. Felicidade é o nome de uma princesa de cabelos dourados entrançados que partilhava comigo a mesa de madeira baça pintalgada de lápis de cor da escola primária. Felicidade é o instante em que se abre as janelas do carro num dia de calor sahariano e a brisa envergonhada bafeja os cabelos. Felicidade é a gargalhada que se ouve da mesa de trás da esplanada. Felicidade é a música de arpa dos pingos de chuva frios a bater nas portadas. Felicidade é uma bola de gelado de chocolate negro e amoras deitada num crepe almofadado. Felicidade é um duche de água veloz com bolas de sabão de perfume a melancia embrulhado nas claves de sol de uma bossa nova do rádio. Felicidade é correr descalça na areia molhada. Felicidade é ouvir a batida acelerada de um coração. Felicidade é um desenho desajeitado de criança. Felicidade é um suspiro. Felicidade é gritar e fechar a porta ao que não faz feliz. Felicidade é alimentar um qualquer desconhecido que se deita em jornais amarfanhados. Felicidade é um espreguiçar mal educado vindo do nada. Felicidade é um vestido branco que deixa espreitar os ombros bronzeados. Felicidade é um momento de cada um.
Se tivesse de pintar a minha Felicidade, pintava num papel qualquer com um lápis qualquer, o primeiro sorriso do R....Enorme, desdentado, lábios cor de framboesa que se derretiam num sorriso delicado. Foi o momento em que fui genuinamente feliz. O R. que não sabia comer, não sabia mexer, não sabia chorar, não ia saber correr, não ia saber falar, não sabia ouvir, não sabia olhar...sorria!  Descobri nesse instante que a Felicidade gosta de jogar às escondidas, mas está sempre por perto. E, como fiquei perita nesse jogo, digo em tom sussurrado que o truque é vasculhar e remexer no meio do que parece ser o nada.


Hoje, é o Dia Mundial da Felicidade...Pergunto eu: não devia ser todos os dias? 


Um dos sorrisos do R.


http://youtu.be/MCPjp4qTmsM





terça-feira, 19 de março de 2013

Pai...

Pais...há muitos!
Pai Natal envelhecido e barrigudo, desenhado nas páginas da infância com laçarotes dourados corpulentos com cheiro a azevinho. Pai Nosso que estais no Céu, cântico que ecoa numa voz única pelos claustros das igrejas pomposas aos domingos de manhã. Pai angustiado o que carrega no colo o príncipe adoecido e na mão trémula o papel amarrotado em que a mãe desenhou os sintomas, que não sabe quanto pesa, os remédios que tomou. Pai que enruga a testa e faz uma força maior que a da própria Mãe na ânsia do primeiro choro. Pai que leva na mala desgastada os poucos tostões e vai para longe em busca de um sonho de todos. Pai de mãos fortes e ásperas com cheiro a peixe, que arregaça as mangas da camisa de flanela ao xadrez e embarca no mar todas as noites. Pai que dá um carro sofisticado aos 18 anos. Pai de avental florido que namora o fogão.  Pai que dá um beijo de boa noite. Pai que cheira a charuto e Oppium. 
O meu Pai é um homem de cabelo às riscas, de mãos tisnadas pela vida, que arregaça as mangas e que se descalça quando é preciso, que namora o fogão e faz petiscos de crescer água na boca, que iça o príncipe R. no colo dorido, que deixa cair lágrimas, que sorri, que fica e que está sempre...
Pai é ser como o meu: aquele que fica e está Sempre.

Ao meu Pai, ao Pai do R., ao Pai da minha Mãe, ao Pai do meu Pai, ao Pai do Pai do R., aos outros Pais e aos Pais que o são sem nunca o terem sido...



Pai da Mãe do R., mais conhecido com Vuvu Bigu


Pai do Pai do R., mais conhecido como Vuvu Jonas

Pai do R.







sábado, 16 de março de 2013

Pensamento engarrafado

Búzios esquecidos, pedaços de corda centenária de navios mergulhados com cofres de moedas de ouro, pauzinhos partidos, algas pegajosas e bailarinas, pegadas subtis de gaivotas emproadas, pedaços que mascaram a areia tonta e revolta da praia que é beijada grotescamente pelas ondas, vestidas de azul-escuro e  a guerrear com as rochas.
Há uns dias, encontrei, deitada na areia, uma garrafa de vidro límpido, calma e intocável, serena e vazia...No rebuliço do pensamento empurrado pelo vento atroz que se fazia sentir, filosofias parvas emergiam: de onde vinha? que peixes teria conhecido? que idade tinha?...Não tinha rótulo, endereço ou mensagem.
Nasceu assim um desafio para o R.: pintar o amarelo numa folha qualquer, desenhar o pensamento daquele instante, as  palavras, escrever a hora, o dia, o sítio, dobrar o pensamento num rolo apertado por uma fita de seda amarela, mergulhá-lo na barriga de uma garrafa transparente secretamente lacrada e deixá-la ir com as ondas até onde ela quiser...O pensamento engarrafado e amarelo do R. irá viajar sem destino, vai namorar as areias, conversar com os peixes, dormir no colo das algas e talvez um dia chegue ao lado de lá do mundo às mãos de outro príncipe que também goste de amarelo.

O pensamento engarrafado do R. vai viajar sem destino... Se o encontrarem, enviem um de volta...


A garrafa deitada, serena e vazia... Nasceu o desafio!

Bolachas...

A precisar de bolachas....
Bolachas moles sem graça do pacote aberto ontem, bolachas tostadas das avós, bolachas redondas embebidas em açucar, bolachas magras e insípidas de cenoura e abóbora, bolachas namoradas que se beijam uma à outra com creme de morango pálido que se intromete, bolachas cor do arco-íris que elengantemente fazem poses de realeza em caixas de papel de seda nas vitrines das galerias de Paris, bolachas empurradas para frascos de vidro apinhados, bolachas de chocolate que sujam os dedos, bolachas compridas que salgam a língua, bolachas de canela sardentas e perfumadas, bolachas que partem como o vidro, bolachas das romarias.
A precisar de bolachas de chocolate ou canela, doces ou amargas, grandes ou pequenas, moles ou estaladiças...

No cacifo desarrumado de porta entreaberta, espreita um pacote abandonado de bolachas Maria gorduchas, cor de trigo e com o sabor de sempre...Risos...

sexta-feira, 15 de março de 2013

Bom Dia, Só

Pão de ontem torrado e morno, dourado pela manteiga roubada à manteigueira antiga das avós, jarro barrigudo que verte pedaços de laranjas doces, perfume de tarte bronzeada de maça e canela fatiada graciosamente, pedaços de ananás ácido em taças de cristal, iogurte com mel que se derrete vagarosamente na boca, gotas de compotas mil que pingam das colheres para a toalha alva com perfume a primavera, maças verdes e pêras frondosas acabadas de colher, café que sai da cozinha numa chaleira reluzente, fumegante e que acorda a alma...
Recordo-me de um bom dia assim, um bom dia já antigo, em terras das amendoeiras...Um bom dia sonolento e frio sentada numa mesa com senhores e senhoras que não conhecia de lado algum...Um bom dia que me faz voar até ao infinito.
Sem tartes, sem compotas mil, sem cafés que acordam a alma...deixo só um Bom Dia!
Porque a torrada simples e desleixadamente mergulhada em manteiga que me ofereceram pela manhã abraçada ao café com perfume a queimado e acompanhadas pelo bom dia melodioso e afável da senhora rechonchuda do bar, também me acordaram a alma, tal e qual as mesas elegantes e graciosas de outrora...
Um bom dia aos bons dias que sabem assim...


Amendoeiras em flor

Muros com histórias

quinta-feira, 14 de março de 2013

Princesa grão de arroz

Pouco mais de 500 gramas de vida, pouco maior que um grão de arroz basmati, a caber numa mão fechada ou numa qualquer algibeira, apenas e só uma pequena princesa de um reino transparente com paredes de orvalho diluiu as angústias vãs da Pediatra que é Mãe...
Perdida por entre fios coloridos e máquinas que gritaram a noite toda, um corpo débil e transparente, uma confusão de vasos sanguíneos rosa pálidos, uns lábios que uma senhora-fada dizia serem bonitos, cabelo quase transparente, mãos débeis e moles em que adivinhávamos umas unhas perfeitas, escondia-se por detrás das vidraças quentes e molhadas, um pedaço de vida do tamanho de um grão de arroz basmati rosa pálido que me sussurrou horas e horas a fio que as angústias se desfazem com as pontas dos dedos...

À princesa grão de arroz que desfez as minhas angústias com as pontas dos dedos de unhas invisíveis e perfeitas...



As mãos da princesa grão de arroz
(Retrato em modo nocturno do lado de fora das vidraças)






quarta-feira, 13 de março de 2013

Angústia enevoada

O ar não entra...
Adejo nasal, respiração intercortada e ofegante, pensamento nas nuvens, mãos trémulas, ecos vazios na barriga, vidros do carro corridos até baixo para o ar gélido nada primaveril que vai lá fora, venha e entre...mas o ar teima em não entrar!
Contam-se os segundos, os minutos e as horas galopantes até ao dia de amanha. Dia em que os olhos ervilha enevoados do R. vão ser massacrados com provas e testes e coisas do mundo dos médicos.
Resta-me apenas uma espera interminável e a vã esperança que não vá ser necessário adormecê-lo com remédios mágicos. Resta-me ir buscar à escola o pequeno príncipe alheado desta tortura que vai ser o dia de amanhã. Resta-me ir fazer noite em que sou Pediatra mais que uma Mãe angustiada por saber o que me, ou antes o que nos resta...

Os olhos enevoados do R. atormentam-me...e mais do que isso, atormenta-me saber o que nos resta amanhã e por daí em diante. Até lá, continuamos, eu, o R. e todos aqueles que nos rodeiam com um sorriso eufórico a galopar os obstáculos.

Olhos pestanudos enevoados

terça-feira, 12 de março de 2013

Mimimos

Mimimos... Não é engano, é mesmo mimimos!
São os beijos repenicados num agudo som das senhoras antigas, são os afagos das mãos pesadas dos avós, são os copos de leite branco e morno com perfume a mel que a mãe leva à cama, são os presentes sem data, são os chinelos à porta da casa, são as bolachas de manteiga tortas acabadas de cozer no forno, são os abraços que chegam de quem não se espera, são os postais que vêm de sítios longínquos com retratos de praias coral, são as lembranças...
São mantas da alma, felpudas, calorosas, inesperadas!

O pequeno R. desenhou a palavra mimimos e gasta-a a torto e a direito, com quase todas as pessoas e coisas que o rodeiam, sobretudo com aqueles que inesperadamente os recebem e não parecem saber o que são... Coram, acendem o olhar e disfarçadamente derretem nas mãos gorduchas e quentes que deslizam nos seus rostos...Mãos que vieram do nada e que vão embora....Quem não gosta de mimimos? Acho que ninguém... E o R. sabe isso...

Mimimos... Só!


O bicho papão que faz tremer

A pedido do João Moreira PInto...aqui vai uma crónica cientifica qb.

http://eosfilhosdosoutros.blogspot.pt/2013/03/convulsoes-febris-o-bicho-papao-que-faz.html?m=1

segunda-feira, 11 de março de 2013

Café

Movo-me a café... digo antes, a cafés...
Café castanho escuro, às vezes com cheiro a queimado, em chávenas de louça. Café de cafeteira de metal antiga, café da cafetaria da esquina, café do bar do hospital. Café com açúcar branco ou amarelo derretido com uma colher-pluma de alumínio. Café que se engole num trago só e aquece o peito.
O R. pequeno príncipe-homem tem um lote de grãos de café imaginário. Convida-me todos os dias para um café quente em chávena de porcelana transparente e com o seu tom emproado pede à senhora dos cafés, que eu não vejo, dois cafés. E, os cafés são recebidos com um sorriso rasgado e um obrigado gestual. Num movimento quase bailado rasgamos o pacote de açúcar e deixamos cair do alto na chávena de porcelana. Rebolamos a colher em círculos velozes, pousamos e engolimos o café... Não houve nenhuma vez em que não tivéssemos queimado a língua. E, é o café que é transparente e que queima a língua, o meu café favorito.



"Dois cafés...", ar emproado de homem e dois dedos esticados

sábado, 9 de março de 2013

Livros

Sebentas de folhas amarelas que cortam os dedos, cadernos de argolas que pingam corações azuis de adolescente, livros de capa dura, pesados, austeros, a transpirar letras anãs alinhadas, cadernos de duas linhas onde se desenham vagarosamente os as, livros pesados de medo que recheiam as sacolas no primeiro dia de escola, cadernos com um  perfume fresco, livros da mercearia onde se escrevem as vidas dos vizinhos do bairro, fotocópias de livros desesperadas de ilegais, livros de folhas poupadas com uma vida infinita, folhas riscadas sábias que se riem juntas e tremem à porta de um exame, livros emprestados que ficaram perdidos num sotão qualquer, cadernos que os príncipes e princesas poluem de cor, livros que têm segredos e dormem debaixo da almofada, livros que têm dizeres na folha de rosto, livros com flores secas e mortas que alguém deu, livros de páginas desbotadas pela dança dos dedos, livros de bolso apertados que viajam, cadernos que comandam cada minuto.
Magros ou voluptuosos, os livros ou os cadernos ou as sebentas, embalam as almas em viagens fabulosas, aquecem o frio das esplanadas, fazem a água ter sabor a batido de morango, pincelam o ar das cores do arco-íris.
Recordam, vivem e revivem...

Folhear livros a cada três páginas continua a ser um dos momentos preferidos do pequeno R....
Acho que sai à Mãe, risos...

Livros que voam
(no tecto alto do restaurante Book)

Eu dou, Tu dás, mas o R. Dá...

Na mão, um pé verde de tulipa branca, torturada pelos deditos nervosos e mexericos, esticava-se até mim. Na outra mão, um envelope verde-ervilha sussurrava Mamã numa letra de criança da primeira classe a esconder palavras dóceis.
Num ápice de um sopro, esticou estas dádivas para mim, sem saber muito bem porquê, mas com a ânsia nervosa miudinha de Dar...
O R. é um príncipe generoso, generoso nas gargalhadas, generoso a pintar para além dos riscos dos desenhos, generoso a encaixar comida na boca, tem bochechas generosas, generoso nos momentos de fúria, generoso nas birras teimosas, generoso nas palavras transparentes, generoso nos abraços apertados que me tiram o ar e me fazem ficar quase púrpura, generoso nas lágrimas piegas, às vezes até manhosas, que rolam numa correria pelo rosto, generoso nas correrias que ainda não sabe dar...
Simplesmente generoso, em troca de nada.
 
Em troca de um nada, o R. generosamente ensinou-me que existe um lado do mundo onde o relógio não corre, que não tem bilhete de entrada, onde se Dá pedaços de tudo...
 
 
 
R. e a tulipa de pé torturado

A dádiva do R.
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Gracinha

Cabelos que desenham caracóis traquinas a emanar um perfume a maresia, dedos delgados e finos que se esticam até se perderem de vista, lábios de compota de morango iluminados, colo vasto e quente, alguém lhe chamou sabiamente  Gracinha.
Porque recheia de graça as salas onde trauteia os números, as letras, as palavras...
Porque o rosto desenha um sorriso engraçado, um sorriso que fica para sempre, mesmo quando o coração bate desenfreado ou chora encolhido...
Porque graciosamente dobra sem partir bolos amarelos recheados de chocolate quente e mascarados de açucar que derretem na boca...
Porque é uma mulher de si mesma, uma mulher minha e uma mulher do R...

À minha mãe, à vóvó do R. e sobretudo à mulher de si mesma que me fez também querer ser mulher de mim mesma...


 
R. e o sussurro da Gracinha em modo vóvó
 

Mulheres de todos os dias

Mulheres cor café com leite, misturadas, mulheres de face encardida que caminham nas ruas obscuras, mulheres anoréticas que escondem maças verdes nas algibeiras e pesam os sonhos,  mulheres redondas que dão gargalhadas gulosas por entre os sacos transparentes barulhentos recheados de gomas coloridas, mulheres compridas com pernas esbeltas de gazela que fazem os olhos parar, mulheres pequenas portuguesas, mulheres enrugadas que escrevem no rosto cada página, mulheres-menina ansiosas, reluzentes e vivas, mulheres com muitos anos, mulheres-vendidas, orfãs de si mesmas, mulheres de pés descalços, encardidos, duros, cicatrizados,  mulheres de saltos agulha que ecoam num caminhar frenético pelos corredores de tecto alto, mulheres-chefe imponentes, mulheres de saia a bater nos pés, mulheres despidas, sem pudores, mulheres da terra, com mãos calejadas pela enxada e unhas sujas, mulheres da casa que salpicam o avental já desbotado de água quente fervilhante das panelas de todos os dias.
Mulheres-prisoneiras de sonhos rasgados, débeis, pálidas, mulheres-piloto que abrem as asas e voam, mulheres do mundo que riem por entre outras mulheres numa tarde de esplanada, mulheres curiosas que sussurram a vida de outras mulheres, mulheres mesquinhas que se escondem atrás das lentes escuras dos óculos de sol, mulheres sonhadoras que pintam nuvens no tecto do quarto, mulheres pobres que gritam sozinhas.
Mulheres-professoras que desenham sublimemente as letras do abecedário com pau de giz, mulheres-carteiras que debaixo de chuva deixam um pedaço de vida em cada caixa do correio, mulheres-cozinheiras que têm braços fortes de remexer a sopa, mulheres-prostitutas que abanam a alma em troca de uma nota, mulheres-presidente que marcham à frente dos homens, mulheres-surfistas que se deitam nas ondas e se encostam no colo da areia...
Mulheres de si mesmas, mulheres dos homens, mulheres dos filhos, mulheres dos filhos dos filhos, mulheres de outras mulheres, mulheres dos outros.
Mulheres há muitas... (como já alguém dizia)
 
Às Mulheres-Maria, Mulheres-Rita, Mulheres-Ana, Mulheres-Sofia e a todas as mulheres que conheço, que não conheço e talvez vá conhecer, e às que jamais irei conhecer.
 

quarta-feira, 6 de março de 2013

Os filhos dos outros

Os filhos dos outros, nascidos em colos de ouro ou numa rua escura qualquer, são príncipes e princesas às cores, enfezados ou rijos, têm nomes compridos difíceis de aprender a escrever ou pequeninos que se desenham num sopro, chamam-se Maria em segundo lugar ou simplesmente Maria, tocam piano ou jogam ao pião nas ruas do bairro, calçam sapatos de bailarina ou andam descalços na terra, vão ao mercado com a Mãe ou ficam em casa sozinhos, espirram, tossem, caem, dão as mãos...
Os filhos dos outros são os filhos dos que suam no jogging matinal ou dos que suam às 6 horas da manhã para apanhar o autocarro apinhado de muitos outros, dos que viajam para Paris de avião de algibeiras recheadas ou dos que vão para Paris numa carrinha feia e desgastada com uma promessa vã.
Eu, tenho muitos filhos, muitos filhos dos outros, no mundo dos príncipes e princesas sem relógio e no mundo em que o relógio corre velozmente contra o vento... Respiro com eles, abraço-os com os olhos, faço danças mágicas com as mãos e o pensamento, invento histórias fabulosas,  afago-lhes o cabelo, voo acima das nuvens e mostro-lhes o sol, o sol que é de todos. Agarro na história destes príncipes e princesas de mil cores, e faço-a rodopiar em espiral. Sustenho a respiração muitas vezes, sinto a dança irrequieta das borboletas na barriga, fico com a boca seca e as mãos lavadas em água. 
Momentos em que sou, e atrevo-me a dizê-lo, uma quase Mãe dos filhos dos outros.


A crónica Os filhos dos médicos é uma crónica do pensamento, não é um desabafo de uma Mãe que viaja entre dois mundos, é uma crónica que sabe a malagueta vermelha que, misturada com uma colher de pau e uma chávena de água a borbulhar à crónica  Os filhos dos outros, é levada ao lume numa panela de ferro... 
E sai: os filhos dos médicos e os filhos dos outros, são príncipes e princesas iguais, coloridos e que querem ser felizes, rir a gargalhada e sonhar sem paredes, com ou sem doenças raras.





Para além das nuvens, SRF & GF & um príncipe filho dos outros 

A luz ao fundo do túnel... FC & MA & um príncipe filho dos outros
(retrato gentilmente roubado ao amigo de sempre RB)






terça-feira, 5 de março de 2013

Os filhos dos médicos

Dizem os outros (que não são médicos) que os filhos dos médicos nascem em colos de seda, são bonitos, nunca ficam doentes ou se ficarem logo são tratados, fazem viagens à volta do mundo, frequentam colégios de elite onde se fala francês ou alemão, jogam golf, adoptam imensos Tios e Tias, chamam a D. Maria lá de casa para lhes trazer um bolo acabado de cozer, são tratados na terceira pessoa do singular, têm nomes compridos, chamam-se Maria em segundo lugar e quando forem crescidos vão ser médicos. 
Eu própria, médica filha de não médicos, disse-o muitas vezes até que conheci muitos quase médicos filhos de médicos e descobri que não é bem assim.
Os filhos dos médicos às vezes sonham sozinhos, abrem presentes sozinhos nas Noites de Natal, adormecem sozinhos, ficam doentes mais vezes e com doenças que só estão escritas nos livros, dizem e fazem asneiras, jogam futebol com os meninos do bairro, sujam a camisola de caxemira e a maioria das vezes não querem ser médicos.
R. é filho de médicos... Nasceu num colo de seda, é bonito e adoptei por ele imensos Tios e Tias, mas ficou logo doente e viveu num reino transparente durante dias e dias a fio, viaja entre dois mundos, voa na magia do seu mundo, mas nunca viajou de avião, fala com as mãos e com os olhos enevoados  ensinou os príncipes e princesas da sua escola esta linguagem de elite, galopa no cavalo que o ajudou a sentar-se, chama a vóvó para lhe dar a sopa... Mas, quando for crescido quer apenas ser feliz. 
Acho que o R., se pudesse escolher, não queria ser filho de médicos.

Os filhos dos médicos... é uma crónica um tanto ou quanto controversa mas arrisco a escrevê-la.
Ao R. e a todos os filhos dos médicos...



R.

Sopa de viola...

O som enrouquecido do dedilhar delicado das violas enfeitado com uma voz com sabor a algodão doce entoa nas colunas do rádio, nos meus ouvidos e na cabeça do R
Soletra soooopa e dá-lhe um paladar tão genuíno que apetece comer, qui bela sopa de arroz com aveia a ferver na panela cheia... E, soa a viola frágil e vagarosa!
Misturam-se os ingredientes que enchem o sorriso do R....


A ternura da voz a entoar com viola as coisas simples... Apresento a sopa de viola...
Risos...



Sopa de viola, a favorita do R.



segunda-feira, 4 de março de 2013

O amarelo do R.

O R. adora amarelo... amarelo cor de palha, amarelo-limão, amarelo ácido que faz arrepiar, amarelo efervescente, amarelo morno.
Derrete-se com os cabelos amarelos ondulados das princesas, desenha com pau de giz amarelo, adora chapéus de aba larga amarelos, a gema amarela dos ovos das galinhas da bisavó, adora meias amarelas puxadas até aos joelhos, adora paredes pinceladas de amarelo.
Amarelo é o sopro de felicidade, a alegria do samba, a energia do que brilha, a força que vem da terra, o fervilhar quente do sol. 
À pergunta de sempre Que cor queres?, responde um balbuciar distorcido que faz enrolar a língua enfeitado por uma dança redonda com o dedo no ar: Amarelo.

Amarelo é na linguagem do R. um círculo desenhado no ar tal e qual um sol. E, desenha-o vezes e vezes sem conta... Acho que no reino dos príncipes e princesas sem relógio, o R. é amarelo, sonha amarelo, respira amarelo...



Yellow R., hoje

Desenhos de catraios

Desenhos de catraios são retratos inocentes das coisas, dos grandes, dos bichos, da vida.
E, nos desenhos dos príncipes e princesas deste mundo, eu sou enorme, cabelo esparguete esticado, uso saia pelos joelhos cor-de-rosa e tenho os braços abertos a abraçar a folha, lábios vermelhos sumptuosos que riem e estou de pé, irrequieta...Chamo-me médica, professora ou tão simplesmente Sofia...Às vezes estou em apuros e outras estou a trabalhar...quase nunca uso bata ou sou carrancuda!
Desenhos dos catraios feitos velozmente à porta do consultório com lápis coloridos de ponta desgastada, são-me entregues com um beijo molhado destemido e ficam para sempre na memória.
Dá vontade de atrasar as consultas para que todos os príncipes e princesas possam fazer inspiradamente desenhos dos catraios. Declaro a partir deste instante que cada mão de criança deverá entrar na porta com as unhas  pintalgadas de cor e a erguer uma qualquer história em papel!
Curiosa inversão de papéis

domingo, 3 de março de 2013

Mamã gosto muito de ti...

Mamã gosto muito de ti...
Escrito a lápis numa folha pautada rasgada de um caderno qualquer.
Escrito com uma letra apressada que exclama e finda num coração pingado.
Chegou e encheu o dia e a noite infindáveis em que sou Pediatra mais que Mãe.
Devolvo no auge da minha impotência um amor infindável à distância de quatro paredes cinzentas.
R. gosto muito de ti...

Mamã gosto muito de ti
Às mãos que içaram o lápis e desenharam as palavras, Obrigada...

sábado, 2 de março de 2013

Corações...

Há mil e um corações...
Há rabiscos de coração de mãos débeis e imaturas que enfeitam quase todos os desenhos das princesas, pincelados de vermelho-vivo ou cor-de-rosa pálido e não são mais do que um carimbo de um amor inocente de criança.
Há balões-coração nas mãos ásperas de unhas encardidas dos feirantes, há almofadas-coração que recheiam as lojas do shopping, há gomas açucaradas-coração que se derretem numa noite de cinema, há bolas de gelado de framboesa que desenham corações.
Há corações grandiosos, robustos e vagarosos. Há corações que assobiam. Há corações que galopam. Há corações minúsculos, traquinas e irrequietos.
Há corações perfeccionistas, que não se enganam, que correm quando é preciso e caminham quando estão cansados, que empurram a seiva da vida para as mãos, para os pés, para a cabeça.
Há corações esquecidos, que perderam partes ou trocaram tudo.
Há corações mentirosos e traiçoeiros que se esquecem de dançar a música da vida ou dançam uma dança diferente.
Há corações mendigos que pedem esmolas a torto e a direito.
Há corações de manteiga derretidos em banho-maria. Há corações de ferro antigo enferrujado. Há corações apertados, envolvidos num nó de cordel. Há corações que dão gargalhadas. Há corações que choram. Há corações piegas. Há corações convencidos. Há corações presos por um fio de teia de aranha que se parte e fogem.
Há corações de Mãe de príncipes e princesas com mil e um corações.
Há mil e um corações mas um apenas para cada príncipe e princesa...


À princesa que conheci ontem, uma princesa de coração esquecido que de tão trapalhão ficou mendigo... E, que dançou preso por um fio de teia de aranha, mas que fugiu.  Ao coração de Mãe que de momento chora... 



Coração de Mãe