Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Carta aberta a ti, querida M

Carta aberta a ti.
Tenho saudades tuas. Muitas. Do ar sábio, calmo e sereno com que debitavas os itens do livro verde junto à janela do antigo Bloco Operatório nas vésperas do exame de especialidade. Do teu jeito chocado a olhar para as minhas dissertações românticas da vida. Das trocas de farda no quarto da Unidade em que rezingávamos contra as barrigas estriadas da gravidez anterior. Da tua letra perfeita, na qual só eu adivinhava o teu nervosismo,  nas folhas de registo do dia anterior. Tenho saudades tuas. Dos teus lembretes para os meus mil e um turnos aqui e acolá. Da tua ingénua bondade, nunca perdida. Da tua paz.
Falei contigo à pouco e lembrei-me de como tenho saudades tuas.
A ti minha sempre M, minha companheira e amiga de aventuras inimagináveis que sempre recordo com um sorriso  no peito.
 
 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Conselho de Mãe, se me permitem

Aos pais que tão bem conheço. Aos pais de hoje. Aos pais que vão ao hospital sem dar paracetamol quando o termómetro chega aos 38. Aos pais que desejam filhos penteados e de roupas imaculadas. Aos pais que vão as consultas pré-peri-pos-natais, infantis, pubertárias e daí em diante. Aos pais que desejam que aos 4 anos os filhos falem francês e toquem  piano. Aos pais que não falham uma única sopa nas férias, nem que para isso tenham que suar as estopinhas. Aos pais que não dão açúcar, nem sal... até aos 3 anos. Aos pais que têm listas de perguntas, intermináveis e sensatas, escritas com data e hora em compêndios comprados para o efeito (e que caibam na carteira). Aos pais que leêm todas as enciclopédias de parentalidade e fazem cursos de como serem pais. Aos pais que delegam nos filhos a conquista de obras por eles não conseguidas.
Há um peso crescente da parentalidade perfeita, mas isso não existe. Costumo dizer, quando os pais se desculpam por os miúdos estarem sujos e que não tiveram tempo de sair da escola e ir à casa tomar banho antes da consulta:”se vissem os meus filhos, parece que brincam na terra...” e a conversa fica por aí. Faz parte...
Aos pais de hoje que são os nascidos nas décadas de 70/80, deixo para lerem o texto seguinte, escrito pela Mãe Imperfeita (do Blogue A Mãe Imperfeita), mas que está perfeito...
E, a propósito, permitam-se à felicidade de uma colher inteira de gelado, de uma camisola suja e, se necessário, de uns joelhos esmurrados. 

“Nascemos na década de 80. Somos a geração que comeu Cerelac, Nestum com mel e papas de farinha Maizena. Somos a geração que levava cem escudos para a escola primária e comprava um Bollycao no intervalo da manhã. Metíamos manteiga nas bolachas Maria e Nesquick no leite. As nossas festas de anos tinham sandes de fiambre e queijo mas também tinham salame e tortas Dancake. A nossa geração bebia Coca-Cola quando tinha diarreia mas antes as nossas mães "tiravam-lhe o gás". Comíamos batatas fritas da Matutano e fazíamos colecção de pega-monstros e tazos. Apesar disto somos também uma geração que aprendeu a comer sopa a todas as refeições e peixe cozido quando as nossas mães assim o entendiam. Não havia comida especial para nós e quando perguntávamos o que era o almoço recebíamos como resposta um "casquinhas de tremoço". Comíamos fruta como sobremesa porque nem nos passava pela cabeça não o fazer. Somos a geração que brincava na rua até à hora de jantar e, no Verão, ainda podíamos brincar depois dessa hora. Andávamos de bicicleta e íamos a pé para a escola, sozinhos ou com amigos. Até para mudar de canal na televisão tínhamos que nos levantar. Somos a geração que ligava para os discos pedidos, a geração que não dissocia a Ana Malhoa do Buereré, a geração que comprava cassetes dos Onda Choc nos expositores dos cafés. Fomos as princesas da Disney e os Power Rangers. Ainda somos do tempo em que os carros não tinham cinto de segurança nos bancos traseiros nem ar condicionado. Jogámos Tetris e tivémos Walkmans e Mega Drives. Tomámos comprimidos de flúor e bebemos óleo de fígado de bacalhau. 

A nossa geração comeu açúcar que se fartou, viu desenhos animados cheios de lutas e outros em que as meninas eram princesas à espera do príncipe encantado. E nenhum mal veio daí. Porque a nossa geração fez tudo com conta, peso e medida. A nossa geração teve mães que faziam o que podiam da melhor forma que sabiam, que seguiam o coração e não viam um papão em cada esquina. As nossas mães eram as mães que nos deixavam lamber a massa crua dos bolos mas que diziam que comer o bolo quente nos dava a volta à barriga. Podiam ser incoerentes, é certo, mas tinham filhos felizes. E nós tivémos mães imperfeitas mas que, na sua imperfeição, souberam dosear tudo e encontraram o equilíbrio. Saibamos nós ser hoje tão imperfeitas como elas foram um dia. Os nossos filhos ficarão gratos. Tal como nós somos gratos.

Que maravilhosas foram as mães dos filhos de 80.”




quarta-feira, 30 de maio de 2018

365 dias

Balanço, diz o dicionário, ser o equilíbrio proporcional entre duas coisas. Não sou de balanços, de todo. Mas, são 365 dias, quase passados e não consigo deixar de rever em modo curta-metragem, talvez até a preto e branco, para realçar as pequenas coisas,  esta outra passagem. 
A dor de barriga miudinha que corrói a cada toque do telefone de emergência, que sempre tive e acho que vou manter para a vida. Os rostos sem nome, que ainda hoje são muitos (ou tantos, como diria a S). O raspanete ácido da Sr. Dra. do Serviço do alheio, ainda hoje de nome sem rosto, que se recusava a falar com colega de voz nova e a roçar juventude, que lhe pedia uma tão necessária transfusão e "ali não era assim" (mas na realidade era imperativa a transfusão e ali era igual a todos os outros lugares). O sistema informático, cujas manhas descobri sozinha. Os corredores tão iguais, maquiados de cores diferentes, que levam a saídas rápidas do elevador, quase sempre em modo engano. Os hábitos e costumes inabaláveis. Os olhares de soslaio, de quem não nos conhece. Os que vão sorrindo e que agora já se riem também. Tudo pormenores. 
O que fica e faz suster a respiração? 
A primeira chamada de emergência. O post-It com a preparação do NaCl a 3% que colei na Urgência. A capa de cartão colorida que aguenta os meninos, 24 sobre 24 horas. A noite de Natal, por entre cateteres, a desembrulhar presentes que não acabavam mais, num ritual já antigo (todos do Serviço deixam presentes para quem faz noite de Natal). A conversa interminável com a mãe do menino-que-nada-iria-fazer mas que demonstrou que o “nem sempre, nem nunca” da Medicina são tão verdade. (Nada que eu já não soubesse, por vasta e calejada experiência pessoal.) A primeira viagem de ida, as primeiras adrenalinas, as primeiras compressões, a primeira dança sincronizada em que não ganhamos o prémio. (Ficam o nome e cama tatuados na memória.) O bolo de chocolate, maravilhoso, que veio das mãos da Mãe que tanto gosto, daquela que não deixo ficar de olhos vazios, da que abraço (eu que não sou de abraços) sempre que os seus ombros se inclinam para mim. A pequena franzina que “deu a volta” depois de rodopios e piruetas, de uma arte quase circense. Ficam os fins de tarde, cor de clementina, que invadem as janelas amplas do corredor. Os telefonemas, não raros, com as vozes amigas do lado de lá do Porto, com as minhas Ms que trazem conforto à alma.
Já me sinto daqui, embora ainda não me sintam daqui. Mas, sou sobretudo e isso sim, é o que conta, sou dos meninos e dos que que estão no cadeirão contralateral ao ventilador. 
365 dias. 

365 dias
Picture by night


domingo, 29 de abril de 2018

Misty days

Somos feitos de neblina daquela que invade o Rio pela madrugada, vinda da Foz, silenciosa e que num piscar de olhos fecha o retrato para o Porto antigo. Somos feitos de átomos e células que se empilham que nem um Lego e fazem um corpo e, é isso que sabemos tratar. Mas, acredito que somos mais do que isso. Não são as células com núcleo e mitocôndrias que nos fazem adorar estradas de asfalto com árvores caídas sobre nós, daquelas que nos levam para longe, nem que seja por instantes. Não são os átomos que nos fazem arrepios ao som de música ou que nos dão a leveza do perfume de jasmim do vaso da varanda. Somos muito para além do que se vê, do que se lê nos livros. Somos inesperados, crus, transparentes. Somos feitos de retalhos de instantes. E, todos sem excepção, somos assim.
É imperativo esquecer (por instantes) o que vai para além da frequência cardíaca e da saturação, para que a cadência de cada acto não se perca, para que a reanimação seja um sucesso, para que o tratamento seja perfeito. O corpo é uma máquina naquele instante e há que pô-la a funcionar. Viramos engenheiros do corpo. 
Mas, no instante em que tudo se acerta, o nome surge, os instantes, os momentos, o que vai para além  das peças de Lego... Pode parecer insensato ou até violento, mas é assim!
Perdem-se alguns pelo caminho, dos que pouco tinham viajado na vida e dos que já tinham uma história contada... Marcam-se no calendário dias de neblina, inesquecíveis, temerosos e sabemos descreve-los um a um... As últimas respirações, o ritmo das compressões, as adrenalinas, os ritmos, os gritos dos monitores, a hora. Perdem-se anos de vida neste caminho, enruga-se o rosto, mas o nome, a cama, os pais, o boneco favorito, ficam para sempre. São a neblina, daquela que invade o Rio pela madrugada, vinda da Foz, silenciosa e que num piscar de olhos fecha-nos o retrato desse dia, para sempre...


Pinky days












quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Com o peso do Mundo às costas

Com o peso do mundo as costas... parece uma metáfora, um cliché, um exagero. Pode até nem parecer nada, sobretudo para quem também nunca sentiu esse peso esmagador da alma. Mas, senti-o também. Vi-o e senti-o. A sua potência esmagadora, o seu grito mudo escruciante, a sua força de Ulisses. Oscilava entre a posição de cócoras amparada pela parede nude e as pequenas mãos desnorteadas do pequeno filho no leito. Os olhos ficavam caídos, colados no chão esterilizado e, por entre momentos, deslizavam medrosos até encontrarem os olhos vagos e recheados de lágrimas do filho. As palavras eram soltas,  num tom tão calmo que arrepiava, interrogatório-afirmativas de uma esperança muito vã. Fui-me deixando ficar de olho no monitor e em ambos, logo ali atrás dos processos clínicos. A reviver uma dor tão parecida. E, num esgar de lucidez, ultrapassado pela ciência, fui levantá-lo do chão, desamarra-lo da parede que segurava com o dorso franzino. Puxei-o e disse-lhe: “nós tratamos dele e faremos o melhor, cabe a vocês terem a fé e a força que nem vocês sabem que existe. Não permito que esteja assim...” Desenhou-se um sorriso e apertou-me com força as mãos.
Não sei se resultou, mas era simplesmente o que eu queria que me tivessem dito quando tive o peso do mundo às costas... 


Aos colegas: sei tão bem o quanto é difícil dar más notícias e também sei tão bem, o quanto é duro ouvi-las. Mas, às vezes, acredito que na maioria das vezes, é imperativo, falar com os familiares, ouvir, responder e perguntar ou simplesmente, fazê-los sentir que estamos lá.