Voltamos...
Renovados, vigorosos, sem olheiras cor-de-carvão. Optamos pelo plano B da vida das pessoas-comuns. Optamos pelas noites de cama real, de almofadas grandes, brancas e com perfume a jasmim.
Optamos pelos sonos de horas não interrompidas. Optamos pelo sábado e domingo em que o centro comercial apinha-se de gente às cores. Optamos pelos meninos sãos ou pouco doentes. Optamos pela vida real, sem histórias de quase-ficção para contar...
Deixei para trás um projeto construído a quatro e mais algumas dezenas de mãos. Fugi das olheiras, do colchão empilhado no meio de uma sala indigna. Fugi do ser uma interna para sempre. Abandonei as paredes cinzentas majestosas do hospital que me fez crescer, mas que também me esmagou o caminho. Perdi os meninos-grão-de-arroz, os meninos de coração apressado, os meninos de vidas vaporosas e fugidias. Larguei o pijama branco-sujo que enchia de cor com toucas floridas e casacos despropositados. Cortei a ânsia do telefone que tocava, o barulho infernal do helicóptero. Esqueci como se dão más noticias (muito más notícias).
E, agora sou assim: salto agulha, bronzeada, diurna. Sorrio livre, sem medos. Dou boas notícias e algumas menos boas (mas nem por isso más). Levo desenhos de cor no bolso da bata justa imaculadamente branca. Não me esqueço de beber 1 litro de água por dia porque está sentada ao meu lado. Sou assim uma pediatra de um hospital privado.
Como disse, voltamos: eu e as palavras, mais doces, mais ternas, mais fáceis, e talvez por isso tão difíceis de retornar a escrever. Falta-me o nervoso miudinho que me fazia perder anos de vida. Falta-me os abraços demorados no fim do transporte. Falta-me as mãos de uma mãe qualquer agarradas às luvas que tiveram a vida do seu filho. Falta-me as respirações rápidas e ofegantes, os cantares dos monitores, as reuniões de passagem de doentes carregadas de doses e planos, as noites não dormidas, as sapatilhas calçadas 24 horas consecutivas. Até me falta, o raio da máquina de chocolates e afins do piso 01. É um facto, falta-me essa vida que me enchia a alma. Ao olhar para o texto escrito, só parecia maravilhoso o ser médica de um hospital público, universitário, pioneira de um serviço pediátrico. É bom e faz-nos felizes, mas é uma felicidade fugaz, que enche a alma e por instantes se evapora. Não queria isso para mim!
Pessoas dos hospitais que nos fazem encher a alma, por favor, cuidem dos vossas pessoas cuja alma é fácil de encher! Se não cuidarem, elas vão-se embora, porque ao contrário do que pensam, ainda há muitas alternativas...
A quem me fez crescer, ser uma melhor mulher, pediatra e amiga!
Ao TIP e a todos os que o viveram: uma vez TIP, TIP para sempre!