Pode parecer idiota mas nunca quis ser médica de pessoas com muitos anos. Tive a certeza sempre que fazia urgência na triagem mulheres e as macas finas que nem papel crepe alinhavam mãos enrugadas, que acordavam por milissegundos e esboçavam lentas uma dança, soltavam gemidos de dor, sofrimento ou simplesmente solidão. Tive-o ainda mais certeza numa noite às 5 horas da manhã quando uma senhora de cabelo caiado de branco-velho, de traços desenhados a pincel no rosto e voz ofegante, por detrás da máscara de oxigénio se agarrou à minha mão de miúda jovem interna e me pediu desculpa pelo trabalho que estava a dar aquela sua crise asmático-solitária. Sentei-me no banco plástico do lado do dela, já meio partido, frio e calculista de hospital público e deixei-me ficar de mão dada, a ouvir a sua juventude por entre suspiros sibilantes da crise de Inverno. Ouvi a sua mocidade elegante (até diria chique) e abraçei cada palavra da sua solidão, que se instalou vagarosamente com o esquecimento dos filhos. Não tinha dinheiro para a medicação, não pedia aos filhos que já tinham muitos encargos e já via pouco, e por isso me pedia desculpa pela crise fora de horas. Aguentei-a até de manhã na urgência para pelo menos aquecer o estômago com o chá e pão ainda meio-seco servido aos doentes no hospital. Sentei-a num cadeirão mais fofo e mantive-a debaixo de um sorriso audaz enquanto observava os doentes que iam e vinham. Nesse mesmo dia, senti que não podia ser médica das pessoas com muitos anos.
Como diria a minha avó: velhos são os trapos... (E, de facto, ela nunca foi velha. Foi sim uma senhora com muitos anos.) Mas há muitos velhos por aí, muitos filhos-velhos-velhacos, que deixam ao abandono as senhoras e senhores de muitos anos que nunca lhes largaram as mãos. E, é para não ter que importar em mim todo o espírito matosinhense que posso ainda ter, que decidi , há muito tempo, não ser médica de pessoas com muitos anos.
Hoje é Dia do Idoso (clicar para ouvir), traduzindo das pessoas com muitos anos...
Nos dias do Pai, da Mãe, dos Namorados, compram-se presentes e dão-se flores. Hoje, dêem aos vossos e não vossos senhores e senhoras com muitos anos, um beijo ou apenas não os tratem como velhos (que não são)...
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