Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe



Sofia Ribeiro Fernandes, crónicas de uma Mãe Pediatra e de uma Pediatra Mãe


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ser Médica

Ser Médica nos tempos que correm. Posso falar por mim, enquanto Médica-Mulher-Mãe, a fundir os 3 Ms como queijo derretido em fogão a lenha. 
Médica de pequenos e graúdos, doentes, na maioria muito doentes, a viver 24 horas consecutivas num hospital cinzento de paredes bem altas, em que a música das máquinas que fazem respirar dança com o choro gritado de alguns meninos e algumas gargalhadas de muitos outros que não estão tão doentes. Especialista em Pediatria com provas dadas e mais que dadas, de uma experiência ganha à conta de muitas horas a custo zero ao estado (só porque muitas vezes as coisas ainda não estavam bem e não era possível ir embora e deixar para trás o menino-filho-de-alguém-que-não-conheço, mas que naquele momento é tão meu que me esqueço de olhar para o relógio). 24 horas que se repetem duas a três vezes numa semana em que o sábado e o domingo não se chamam de fim-de-semana. Horas passadas no asfalto a longos quilómetros do meu sítio, com uma enfermeira e um técnico de ambulância de emergência, a partilhar os minutos em que estamos a ir em direcção a um menino-filho-de-alguém-que-não-conheço. Telefone que não pára de gritar a noite toda, indiferente à claridade da janela e à claridade de pensamento que às 5 horas da manhã já não é lúcido. A Médica que eu sou é isso: sem hora de saída, taquicardizante, inesperada. E, se me queixar, ainda posso ouvir: não foi o que escolheste? E, não deixa de ser verdade...
Mulher, ausente, cansada, sem vontade de ir comprar o recheio do frigorífico e com uma vontade quase ridícula de derreter o cartão em roupas que nem experimento. A isto chamo a Teoria do Eu Mereço.
Mãe do R., que nasceu no segundo ano de uma caminhada pelo internato de especialidade, tão carregado de pequenas imperfeições tão perfeitas. Mãe que não cumpriu horários de amamentação e fez horário nocturno de urgências mesmo quando a lei lho permitia fazer. Mãe que se refugiou no ser Médica para trabalhar mais, ganhar mais e dar mais e esqueceu os direitos sozinha, abdicando de mais tempo, mas mais possibilidade de oferecer aquilo que o R. tinha que fazer e não tinha direito. (Mãe que foi criticada por isso mesmo, o não usufruto dos seus direitos de Mãe.) Curiosamente, quando sou Mãe do R. e da S. (ainda escondida), em resposta à baixa médica indiscutível colocam-me a piadinha do costume: agora todas têm direito, não é? (Mãe criticada pelo usufruto dos direitos de Mãe.)
A Médica-Mulher-Mãe de hoje já não é a mesma de há 6 anos. Aprendeu que as imperfeições fazem parte, que não é insubstituível e que ninguém nos agradece. O que me satisfaz? A forma tonta como percorri esse caminho, recheada de uma energia galopante e sem nunca esquecer que o importante era ser e fazer alguém feliz. Não interessam as rugas riscadas no rosto, as horas não dormidas, as horas não pagas, o tempo não passado. Interessam as horas em que fui Médica-Mulher-Mãe e deixei ficar no turno o riso de cada menino-filho-de-alguém-que-não-conheço. E, a partir de agora, interessa ser mais Mulher-Mãe-Médica... Se me vão deixar? Acho que não, mas sendo assim, temos pena!

O trabalho de 24 horas consecutivas aniquila a lucidez do pensamento e turva qualquer procedimento.  Pergunto eu: Se às 5 da manhã, estivesse a precisar de ajuda o menino-filho-de-alguém-que-conheço em vez do menino-filho-de-alguém-que-não-conheço, as coisas acabariam por mudar, certo?

http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1521676


Médica-Mulher-Mãe do antes




3 comentários:

  1. À mãe, mulher, e pediatra, que já me ensinou tanto pelo que escreve, pelo que partilha, pelas partidas que a vida lhe pregou, e mesmo assim trás o mundo no sorriso, e o sol no olhar!
    Obrigada por tudo.
    Porque antes de ser pediatra, é mae, e antes disso, mulher.
    Mas primeiro?
    Primeiro, é humana.

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  2. Estou com o mesmo problema e a sentir-me culpada. O que é melhor trabalharmos para lhe darmos mais, aquilo que por direito não tem ou ficarmos mais tempo com eles? Bj
    Bernarda

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  3. Sofia, desde já dou-lhe os meus Parabéns por (mais ) este texto. Nunca as suas palavras me reconfortaram tanto e foram tanto ao encontro das minhas reflexões nas últimas semanas...Reflexões de uma profissional que deixou para trás todo um percurso (e já assente em alicerces razoáveis), trocando-o novamente por uns duros bancos de "escola". Reflexões de alguém que decidiu que nem tudo na vida podia esperar e por isso teve um filho quando andava ainda no 3º ano da faculdade (1 mês com ele em casa e depois...sem direito a licenças de maternidade, horários reduzidos...sem "direito" sequer a uns avós por perto, para ajudar a equilibrar)... e como um era pouco, e como o tempo passava, e como aquele curso teimava em não acabar... outro filho...quando estava a entrar no 5º ano do curso (15 dias com ele em casa, uma empregada contratada para me assegurar as manhãs...e novamente sentada nos bancos da escola). Exames, trabalhos, estágios...rotinas que começavam de madrugada para dar de mamar, tirar leites para deixar e...sair a correr. Sempre a correr. Sempre a correr contra o tempo. Olhando agora para trás, acho que apenas consigo ver o reflexo de uma vida sem tempo. Sem tempo para mim; sem tempo para nem eles. Puzzles semi-feitos, brincadeiras mal acompanhadas, histórias contadas à pressa...para ver se ainda sobrava tempo de ir ler "outras letras". Sempre numa luta constante entre o que devia e o que tinha que ser feito.
    E com isto, dou conta que os anos passaram; dou conta que quem mais de mim merece, menos de mim teve; dou conta que abdiquei dos melhores momentos da minha vida e da vida de quem mais adoro... simplesmente porque quis correr atrás do Sonho. Agora, parafraseando a Sofia, sou também mãe-mulher-médica (mas ainda com todo um longo caminho para trilhar, pela frente) sem conseguir achar o equilíbrio profissional-pessoal que tanto gostava de encontrar. Aliás, cada vez o vejo mais longe e cada vez me convenço mais que há vidas que não se coadunam com isto. No meio de tudo isto, quero convencer-me ainda de que a felicidade está realmente em todas as pequenas coisas que, mesmo sem darmos conta, nos vão aquecendo a alma. Desculpe o desabafo. Na realidade comecei a escrever porque queria apenas dizer..Obrigada, pelo seu texto. Bj Joana

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