Adoro pensamentos voláteis que num passo de magia se transformam em pensamentos lacrados. Adoro pensar em coisas e adoro fazer coisas sem pensar... Mas, porque existem pensamentos alinhados e quem os reflita como ninguém pedi à homónima Sofia que pensa e escreve a 4D que nos falasse sobre gravidez...
Tic tac tica tac – pensar a gravidez e a maternidade
Embora sejamos uma sociedade envelhecida, é importante, talvez até por isso mesmo, pensar a gravidez e a maternidade porque, no fundo, ao fazermos esta análise estamos a reflectir sobre a nossa continuidade geracional e também sobre a nossa própria maturidade, como adultos que somos. Efectivamente, o nosso estatuto enquanto adultos começa aí. Somos um povo que foi perdendo os seus rituais de passagem e este, curiosamente, é dos poucos que ainda nos resta.A gravidez é uma transição que requer uma ressignificação especialmente do papel da mulher enquanto mulher-ser feminino, enquanto esposa, enquanto profissional e enquanto mãe, mas também do homem, especialmente enquanto ser masculino, pai e marido, do casal enquanto par conjugal e também parental, e se pensarmos bem, de toda a família, porque é quando estas duas pessoas deixam de ser em primeiro lugar filhos, aos olhos dos seus próprios pais e restante família alargada, para passarem a ser pais e adultos, com outras preocupações, responsabilidades e objectivos de vida.A gravidez é, então, uma transição, uma fase de grandes transformações, um momento de um enorme turbilhão de emoções e de adaptações a uma nova realidade. Adaptações a uma realidade externa e mudanças no nosso mundo interno, sem dúvida. Aceitação de uma nova identidade.Muitas vezes este processo tem início mesmo antes da gravidez, quando se começa a sonhar o bebé e a fazer uma retrospectiva da sua própria vida e da sua história, das relações que construiu na infância com as pessoas mais significativas para si, com um olhar diferente, mais intenso, mais crítico até. Há um desejo profundo de fazer igual ou de fazer diferente. De fazer melhor.A mãe da mãe é, de facto, o primeiro e principal modelo de comportamentos e afectos. Foi ela quem ensinou o que é ser mãe e como é que uma mãe se sente e se comporta. Acomodar-se ao papel materno é olhar para trás para projectar o futuro. É reavaliar relações, tanto nos aspectos mais gratificantes como nos mais dolorosos. É incorporar e mimetizar o que se considera altamente importante seguir e assumir o que não se quer fazer, por não ser adequado à sua forma de ser, por não fazer sentido, por ser sentido como muito negativo. Integrar e repensar-se enquanto filha e aceitar o que de bom e de menos bom houve no desempenho dos pais é essencial para se ser mãe.Ao mesmo tempo que a mulher trabalha a relação com os seus pais, vai acomodando internamente as suas expectativas à realidade, gerindo todas as ambivalências próprias desta fase. Está feliz e não está feliz, quer a gravidez e não quer, aceita este novo estado e as transformações físicas e psíquicas inerentes e não aceita. Rejubila por tudo o que aí vem e teme as grandes mudanças. Sonha com um bebé ideal e uma gravidez ideal que, aos poucos,vão sendo substituídos pela mais doce ou mais dura das realidades.Aos poucos vai crescendo a capacidade de pensar o bebé, à medida que a barriga cresce, à medida que os movimentos do bebé se fazem sentir, à medida que a data do parto de aproxima. Os cuidados consigo, com a alimentação, as consultas, os exames médicos, o pensar e preparar o quarto do bebé, os primeiros pontapés, as primeiras roupinhas efectivam esta realidade e espelham, sem dúvida, todo o investimento dos pais.E eis que chega o parto, um processo abrupto caracterizado por mudanças rápidas. Este momento é temido, porque é doloroso, desconhecido e porque realmente é aqui que tudo começa, devendo o período pós-parto ser considerado a continuação do período de transformação, onde efectivamente se dá a separação mãe-bebé, onde ocorrem modificações fisiológicas sérias, bem como alterações na rotina e relacionamento familiar. Finalmente surge o bebé real e aceita-se o bebé que nasceu e aceita-se que o bebé é uma pessoa separada, que já não é só da mãe, mas também é do pai e até dos outros elementos da família.O voltar para casa traz simultaneamente alívio e preocupação. Sai-se num dia e volta-se uns dias depois, para uma vida nova e diferente daquela que se deixou, uma vida que ainda não se compreende totalmente. É de facto muito raro haver mães que se sintam completamente adequadas a este novo papel, embora se ouça muitas dizer que nasceram para isto.As necessidades do bebé e da mãe nem sempre são convergentes, o que é compreensível. Nem sempre a mãe se sente capaz, quando ela própria está fragilizada e a precisar de atenção e carinho. É então que começa a perceber que a realidade é mais complicada do que a fantasia que criou e é imprescindível que peça ajuda e que se faça valer da sua rede de suporte e cuidados.Todos estes meses a aceitar e compreender a gravidez e tudo o que a envolve e eis que agora a mulher tem de se desligar da gravidez para iniciar outra fase e esta é tão longa que vai durar toda a vida – a condição de ser mãe.Quando se tem mais filhos pode parecer tudo mais fácil, pois afinal já se passou por aquele tsunami antes. Só que agora a sua família está mais complexa do ponto de vista relacional. A experiência que já se tem atenua a ansiedade e aumenta a eficácia, mas o facto de já se ter outro ou outros filhos cria medos difíceis ou impossíveis de ignorar. Medo de não conseguir cuidar dos filhos ao mesmo tempo, culpabilidade por ter de dividir a sua atenção e culpabilidade por não saber se vai conseguir amar os filhos de forma igual. É importante que a mulher veja este filho como um filho único, ou seja, diferente dos outros filhos e que prepare o(s) outro(s) filho(s) para a chegada do irmão ou irmã.Será que ao escrever tudo isto estou a assustar quem me lê? Talvez não…possivelmente sim. A verdade é que são períodos difíceis, são períodos de crise. A boa notícia é que também são momentos óptimos para evoluir, para amadurecer, para aprender e crescer. São momentos mágicos, muito mágicos. Um dos riscos a ter em conta vem da própria sociedade que não dá espaço à mulher para não gostar desta fase, que cultiva o estereótipo de maternidade como “a fonte da eterna satisfação sem fim, ping-ping-ping”; que cultiva a ideia de que quem não gosta de estar grávida não pode ser boa mãe ou que a mulher tem forçosamente que passar pela maternidade para ser mulher. A maternidade não vem com um relógio no bolso tic-tac-tic-tac, não vem nos genes, não é inata. A noção de maternidade natural e instintiva não existe, ou melhor, parece existir porque a determinada altura as mulheres apercebem-se que de facto ser mãe é fundamental para a sua realização pessoal, num contexto em que a maternidade é valorizada e acarinhada, num contexto que permite que a mulher se sinta confortável com este papel. As mulheres que escolhem não ser mães não são menos mulheres, de maneira nenhuma. Para além de tudo, ainda há que lutar contra tantas expectativas e pressões. Basta vermos as frases que postamos nas redes sociais, os vídeos que partilhamos, os anúncios enternecedores que nos fazem ficar com lágrimas ao canto do olho e o coração a bater mais forte. São frases e anúncios onde o bem-estar sentido com a maternidade é realçado e o desconforto e as preocupações disfarçadas de brincadeiras e piadas leves, muito leves. Ser mãe e pai não é, afinal de contas, tão natural quanto a satisfação das nossas necessidades mais básicas.
E, aqui vai...tic-tac-tic-tac!
A vida a 2D |
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